Clubes podem recorrer à Justiça comum? A hora do judiciário entrar em campo
Da FOLHA
Por WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH
Por volta de 1721, o jusfilósofo Montesquieu publicou as famosas “Cartas Persas”. Utilizou um raro expediente literário concebido pelo genovês Giovanni Paolo Marana a imaginar um islâmico em Paris.
Por cartas, esse islâmico descrevia, aos familiares na Pérsia, as suas impressões sobre o sistema constitucional francês, a política e o cotidiano. Usado o gancho epistolar, seria difícil a um remetente de passagem pelo Brasil convencer o destinatário sobre haver sido justa a decisão não judiciária que despachou a Associação Portuguesa de Desportos para a segundona.
Num jogo para cumprir tabela e a entrar em campo já classificada para permanecer entre os times da elite do futebol brasileiro, a Portuguesa –sem dolo e por falta de regular aviso da CBF– colocou o jogador reserva Héverton nos minutos finais da disputa que findou empatada com o Grêmio.
Em toda partida do chamado Brasileirão, há obrigatório comparecimento de um representante legal da CBF. A propósito e no jargão ludopédico, esse mandachuva de gravata e com direito a simbólica mesa próxima à linha lateral do campo, conferiu as suas anotações e autorizou a entrada de Héverton. O certo é que ele deu o seu “nihil obstat”.
Depois dessa partida e da queda do Fluminense, duas instâncias da denominada Justiça Desportiva da CBF, que é uma pessoa jurídica de direito privado, sancionaram a Portuguesa. Isso com desproporcionalidade visível quando feito o cotejo dos critérios sancionatórios: quatro pontos perdidos com rebaixamento e baixa multa de R$ 1.000.
Nos dois julgamentos desportivos, e não judiciais, concluiu-se ter Héverton ficado fora de apenas uma partida, quando o correto teria sido de duas. Em síntese, a Portuguesa foi rebaixada e aplicou-se, a seco, o regulamento e o código esportivo com olvido aos princípios gerais e informativos do Direito pátrio e ao Estatuto do Torcedor. Tampouco se aplicou subsidiariamente as regras da Fifa, todas favoráveis à Lusa.
Em cláusula pétrea, a nossa Constituição republicana estabelece não se poder excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão a direito. Assim, resta à Portuguesa buscar um provimento jurisdicional, ou melhor, bater à porta do Poder Judiciário. Por evidente, serão chamados para integrar a lide processual todos os litisconsortes.
As decisões desportivas foram míopes e despreocupadas quanto ao justo. Em definição que guarda atualidade, o jurista Celsus disse ser o Direito a arte (técnica) do bom e do justo. Daí, foram cunhados vários alertas. Por exemplo e em caso de interpretação meramente gramatical, e não lógica e sistemática, o “summum jus, summa injuria”: a aplicação de um regulamento ou lei em excesso gera injúria excessiva.
Trocado em miúdos, houve com a Portuguesa interpretação e sanção excessivas. Tudo diante das circunstâncias fáticas e da ausência de dolo. Nem venha com o “dura lex, sed lex”, com que se preconiza dever a lei ser aplicada ainda que imoral ou injusta. Essa máxima, da preferência do insensível inspetor Javert, de “Os Miseráveis” de Victor Hugo, serviu, embora não referida expressamente, como embasamento das decisões do Conselho e do Tribunal de Justiça Desportiva da CBF.
Quando um maior de idade furta uma bala no supermercado, comete infração de bagatela. O inquérito é arquivado e, assim, incogitável a aplicação de pena. Numa partida de futebol sem significado entre Portuguesa e Grêmio, chegou-se ao cúmulo da perda de quarto pontos (três pontos a título de sanção e um pelo jogo empatado), algo desproporcional, injusto, mas, atenção, na exata medida para levar à queda da Lusa para a segunda divisão.
Num pano rápido e a repetir o sempre lúcido colunista Hélio Schwartsman, desta Folha, “garfaram a Portuguesa”. Mas, resta o Judiciário.
WÁLTER FANGANIELLO MAIEROVITCH, 66, desembargador aposentado, é presidente do Instituto Giovanni Falcone de Ciências Criminais.
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